domingo, 14 de agosto de 2011

A GUERRA QUE NÃO QUEREMOS VER



Ao lado, foto de uma cela de uma das casas da FASE RS. Os adolescentes não estão identificados, como pede a lei.

Uma verdadeira guerra civil acontece hoje no Brasil. Uma significativa parcela da população sequer alcança as políticas sociais e afirmativas implementadas a partir de2003. E mesmo as pessoas que usufruem algumas destas políticas não pode ser chamadas de cidadãos. A outra parcela, incentivada pela mídia, sente-se refém do crime, clama por punições rigorosas, fecha os olhos à raiz da violência. O moralismo ocidental-cristão diivide a população entre os bons e os maus.
Em meus vinte anos de trabalho como monitora da antiga FEBEM, hoje dividida em FASE (para infratores) e FPE (para risco ou vulnerabilidade social), presenciei situações que a imprensa não mostra. Um exemplo recente: Três irmãos, de 11, 12 e 15 anos envolvidos em pequenos atos infracionais recolhidos à abrigagem. Família de treze filhos. Dos outros, duas irmãs, anteriormente abusadas pelos irmãos mais velhos, hoje vítimas de exploração sexual, um irmão no presídio, outros dois na FASE.  Moravam num casebre sem banheiro, uma única peça, uma única cama onde dormia quem coubesse. Os outros, no chão. Quando receberam o “kit ingresso”, estranharam as escovas de dentes, que nunca haviam usado. E ficaram maravilhados quando viram a prateleira de frutas com bananas, laranjas e maçãs. “Parece um supermercado!” Ato infracional: Cometiam pequenos furtos ou “pediam” nos bairros próximos.
Toda uma camada social classificada como “abaixo da linha da pobreza”, os miseráveis, sofrem igualmente os apelos do capitalismo ao consumo. Para um adolescente pobre, dos poucos que conseguem trabalho formal e recebem seu salário mínimo com os descontos legais, olhar uma vitrine e ver que um par de tênis que pode custar mais do que recebe por um mês de trabalho, desejar usar o desodorante, usar a calça, o boné que outros usam e ver que, na mesma vila ou favela onde moram outros adolescentes tem tudo rapidamente aponta uma saída imediata: O crime. Seja pelo furto, o roubo ou o mais rentável: O tráfico.
O tráfico tem plano de carreira, remuneração generosa e dá ao menino um status dentro da comunidade. Ninguém se mete com família dos agregados ao grupo. O caminho é curto, e a vida deles também: Em média, morrem antes dos 24 anos. Tenho uma foto, tirada em 1993 com quinze adolescentes que cumpriam medida no antigo Instituto Central de Menores. Em 1998, todos menos um já haviam morrido. Bala de polícia, de “contra”, disputa de territórios. Cerca de 70% dos adolescentes hoje cumprindo medida na FASE estão ligados ao tráfico. A grande maioria,  usuários de crack. Passaram os tempos da maconha.
A ideologia capitalista ao mesmo tempo em que impõe o consumo exige que esta vasta parcela da população se submeta a não consumir. É a velha máxima da saída individual, da força de vontade, do querer é poder. E as doutrinas religiosas pregando a submissão, reproduzindo estes valores,a régia recompensa na outra vida. Afinal, as igrejas também tem plano de carreira: fiéis, obreiros, pastores. E os adolescentes espremidos entre o apelo de consumo e a falta de dinheiro.
A maior parte das vilas e favelas tem toque de recolher, lei do “não vi nada”, e quem manda é o patrão. É ele quem resolve o que o Estado não resolve. Mantém a ordem, resolve os  casos de litígio entre moradores, providenciam o carro que leva a grávida ao hospital, arruma o gás que faltou, pune severamente o estuprador, o ladrão que rouba na comunidade. É o Estado paralelo ao Estado. E claro, suborna o policial, a autoridade ou o magnata que nunca pisou na vila mas distribui a droga distribui a droga. Que não  não nasce na favela.
Alguém já viu uma fábrica de armas dentro da favela? Uma plantação de maconha? Uma refinaria de cocaína, um laboratório de êcktasy? Não, tudo isto vem de fora. Mas quando a droga mata um filho da classe média, a imprensa se revolta. Cerca de dois anos atrás, uma advogada, moradora de um dos bairros mais nobres de Porto Alegre matou o filho viciado em crack. O fato teve repercussão nacional, e a partir dele surgiu a campanha da RBS, filiada à Globo “Crack nem pensar”. Mas uma semana antes, uma outra mãe, esta de um dos bairros mais pobres da cidade, a Restinga, também havia matado o filho. A advogada agiu sob violenta emoção, nem sequer foi detida. A outra mãe cumpre pena. O crack, criada nos guetos latinos e negros dos EUA, arma eficaz da política de extermínio da juventude pobre, quando extrapola os limites dos guetos, passa a ser uma ameaça letal. Antes, era só mais uma das drogas de miseráveis, moradores de rua e marginais.
Nas favelas e vilas, sob forte apelo midiático, sai o tráfico e entram as milícias. Que, em não tendo vínculos com a comunidade, com estilo militaresco, reproduzem a violência sem trazer as compensações. A imprensa saúda a saída dos traficantes, mas ignora as milícias. A segurança, a saúde, a educação, obrigações constitucionais do Estado, passam para a iniciativa privadas. Quem pode, paga. Quem não tem para pagar, pena. Tudo é privatiizável, incluindo as cadeias. Que não ressocializam, não capacitam, mas manteém os indesejáveis fora de nossas vistas. A miséria deve ficar fora de nossas vistas, como os índios, as crianças exploradas sexualmente, o trabalho escravo.
Concluindo, vivemos a segunda idade média, com as maltas de miseráveis perambulando pelas periferias, recolhendo migalhas, ameaçando o direito auto-concedido dos que tem muito, enquanto encastelam-se atrás de sistemas de segurança privada, carros blindados, usufruindo de serviços privados, e pagando salários miseráveis aos miseráveis que se submetem a esperar por uma chance de ascenção social que lhes é acenada mas nunca concedida.
A violência social pode ter fim: basta o Estado cumprir efetivamente suas funções e ter coragem para realizar uma efetiva redistribuição de renda. Fora disto, nos resta a barbárie, mas esta, já estamos vivendo.

Um comentário:

Igor de Fato disse...

Quando a gente se refere a camada das pessoas que estão "abaixo da linha da pobreza", estamos nos referindo a uma camada que sequer consegue vender sua força de trabalho por dinheiro, e ao mesmo tempo não é escravizada recebendo um prato de comida ao final do dia. Ou seja, é uma população que aparentemente não "serve" ao sistema. É um "resto" para o chamado sistema. Uma massa que não tem serventia, a não ser para perturbar a paz dos homens e mulheres "de bem", que pagam seus impostos e tem um lugar na sociedade. São os "dalits" da sociedade indiana? Talvez seja um paralelo possível.
Pois bem, nós que não nos conformamos com a barbárie do sistema capitalista e estamos na luta pela superação dessas injustiças, devemos apontar um projeto. Qual a alternativa? Qual o caminho?
O expressivo aumento da miséria foi decorrência da nova liberalização da economia intensificada em meados dos anos oitenta, e que hoje permanece hegemônico. É o malfadado neoliberalismo. A alternativa concreta ao neoliberalismo hoje é o desenvolvimento. Por isso, somos desenvolvimentistas. Precisamos aquecer as máquinas produtivas da sociedade, produzir calçados, softwares, roupas, móveis, etc, porque essas coisas precisam de mão de obra, geram empregos, e com isso vamos pucxando essa juventude para o mundo "produtivo", arrancamos ela do Estado paralelo, do plano de carreira do tráfico. Esse não é nosso fim, é nosso meio para projetar uma sociedade mais avançada a partir daí.
Estamos no pprocesso de conferência municipal de juventude, e estamos debatendo a construção de oportunidades para a juventude justamente dentro dessa perspectiva. Temos falado muito nas escolas técnicas, que Dilma tem anunciado, e nas alternativas de permanência da juventude do campo.
O debate é de todos nós e é permanente o desafio.