O frio, quando acorda a lagoa, trata sempre de primeiro
enrolar suas espumas no manto opaco da cerração. Os barcos se aprontam com suas
redes e anzóis, o peixe esta época já está crescido e pronto para o fogo.
Milênios passam, e o peixe continua dando sustento aos ribeirinhos. Não mais
como antes, no tempo e fartura; Hoje poucos respeitam a piracema, não há tempo
para procriarem. E também tem a sujeira, o lixo, o esgoto e a porcaria
industrial murchando os juncos e outras plantas, arrancando o resto de ar da
água apodrecida.
Mas ali, onde falo, ainda restam alguns juncos, alguma
espuma branca e tainhas gordas. Manhãzinha já começa o trabalho. Melhor que não
tenha chuva, porque a cerração baixa com o sol.
As casas para trás do centrinho, ainda madeira sem grades. Telhados
desprotegendo os caibros da madeira de pouco mais de duzentos anos. O velho e
pioneiro porto que a cheia de 1941 levou, era lá que chegavam pessoas,
mercadorias, guerra, mortes. Uma guerra que não era nem daqueles açorianos, nem
daqueles negros, nem dos guaranis. Uma guerra que, dizem, deixou navios,
canhões e riquezas no leito da lagoa.
Por ironia, os espanhóis religiosos que lá tentaram se
estabelecer por volta do ano de 1600, foram expulsos pelos guaranis. Mas deixaram a base de pedras onde foi
construída a Fortaleza que também não vingou.
Aquela terra é inquieta, rebelde. Não aceita sua depredação.
Quem diria que expulsaria terrenos e loteamentos já instalados para retornar a
ser mato? Quem se atreveria hoje a desafiar os profundos poços das pedreiras
violentadas?
Aquela água é sólida, é uma imensa e maciça construção de
suas diminutas gotas, aquele vapor imperceptível a quem não lhe presta atenção.
Aquela água toda, aquelas marolas, ou as ondas em dias de tempestade, seja no
calor ou no frio, aquela água nos leva, embala, revela.
Mas não se descuide: Nunca deixe ou leve sua alma inteira. A
lagoa precisa de um tantinho de nossa alma, assim como precisamos dela, de suas
gotas, de seus grãos de areia. A tentação de entregar nossa alma inteira pode
nos tornar parte indissociável dela. E negar nosso pedaço de alma certamente
nos privará de seus encantos.
A lagoa é nossa medida. E ela nos escolhe meticulosamente
entre as centenas de seres que infestam sua água, sua areia, seus juncos. Não,
nada de critérios mundanos, nada de ouro. Nada de castidade absoluta, nada de
seres dedicados as lides espirituais. Seus critérios são outros, e eu não os
entendo. Mas já conheci outros prediletos da lagoa. E todos nós conhecemos esta
escolha.
Mesmo com toda a movimentação que já houve por lá, por vezes
dá para sentir as naus chegando, com imigrantes que mal passavam de meninos e
meninas, ansiosos, com medo, a angústia do desconhecido. Certa vez me pareceu
ver uma fila de pessoas andando rigorosamente em ordem. Não durou um segundo,
mas entendi que estava percebendo os japoneses chegando à região, onde
desenvolvem um belíssimo trabalho de agricultura familiar.
Algumas noites de céu limpo e vento sul, com atenção,
podemos ouvir os lamentos das almas dos afogados. Dos que ousaram aquela morte
terrível, e dos que se igualam pela busca incansável dos tesouros que pensam
achar.
A lagoa, seu leito, suas águas, suas matas, suas pedras,
tudo isto faz parte do tesouro. Mas o mais valioso de tudo é entender que
nossas almas fazem parte dela e ela de nós. O privilégio de conhecer, entender
e sentir a lagoa.