domingo, 3 de julho de 2011

O que querem os moradores de rua

Minha casa fica a algumas quadras de um dos maiores postos de atendimento do SUS em Porto Alegre. E a poucas  quadras de ambos, o segundo maior cinturão de miséria da cidade, a Grande Cruzeiro, formada por mais de trinta vilas ou ocupações. Nas décadas de 80 em 90, ali foi forte o movimento popular pela regularização fundiária, a resistência contra despejos sumários, por água, luz, escolas, creches, transporte, enfim, pelo direito de morar e viver.
Durante estes anos de militância no movimento comunitário lembro de inúmeras situações, participei de ocupação, convivi com os moradores que chegavam do interior ou eram despejados de outras ocupações. Lembro da solidariedade daqueles que encabeçavam as lutas para não deixar ou famílias ou indivíduos ao relento. Neste período, não lembro de absolutamente nenhum morador de rua na região. Conhecíamos alguns moradores que se deslocavam para o centro da cidade para mendigar, mas retornavam para suas casas.
Desde o final da década de 90, envolvida muito mais com o movimento sindical, mesmo morando próximo à Cruzeiro, diminuí o contato com os moradores, com os dirigentes comunitários da região. Hoje, muitos deles já não se envolvem tanto nas lutas. A militância comunitária hoje tem entre seus líderes pessoas sérias e comprometidas, mas tem também os militantes profissionalizados para manter fechados os currais eleitorais partidários. E tem o tráfico, em muitas situações ocupando o espaço que o poder público deixa em aberto, fazendo o trabalho assistencial que os governos não fazem.
Mesmo com os avanços do Governo Lula, entretanto, desde o final da década de 90 formaram-se na região pequenos núcleos de moradores de rua nesta região. São grupos de oito, dez pessoas, majoritariamente homens, alguns jovens, outros mais velhos. Costumam catar lixo, e com a falta de local para armazenagem, ocupam esquinas, parte das raras praças. 
Um grupo em especial me chama atenção, por fazer parte do trajeto de minhas (poucas) caminhadas: O grupo que ocupa um pequeno espaço de calçada atrás do prédio do SUS. Em sua maioria são homens de meia-idade, vejo algumas vezes uma mulher entre eles.. Amontoam lixo, e alguns moradores da vila próxima ainda despejam lá seus lixos em dias de não-coleta.
Geralmente bebem, o copo coletivo. Não se referem a ninguém que passe por lá, não pedem nada. Revezan duas cadeiras e um banco, alguns colchões empilhados, sacos de lixo como de armário para os poucos pertences. Caixas de madeira empilhadas. E lixo, muito lixo à volta. Que eles separam, carregam até o comprador num carrinho de coleta e outro de supermercado.
Dia destes parei para conversar com eles. Educadamente, demonstraram pouca disposição de falar. Mas talvez por estranharem as perguntas, conversaram um pouco.
Não queriam conversa por achar que eu fosse de alguma igreja, disposta a fazer  pregação ou convite para cultos. Ou que eu fosse da FASC, propondo levá-los para algum abrigo.
Por que estão na rua? Porque perderam, coisa a coisa,  trabalho, família. Ou porque não eram aceitos pelo grupo familiar, por não terem o que oferecer, por não encontrar trabalho pela falta de capacitação para os novos tipos de trabalho que surgiram. E porque, segundo eles, na rua formaram uma nova família, criaram outros laços, descobriram outras maneiras de se relacionar e viver. Por vezes, quando doentes, tomam banho nos abrigos municipais, mas geralmente não tem vagas. Acabam sendo atendidos no PAM, depois de receber higienização. Mas não gostam de se apresentar sem asseio para enfermeiros e médicos. Então, o Lago dos Açorianos ou o Espelho dágua do Parque da Redenção.
Abrigos não, dizem eles, pela rigidez de horários, pelos furtos ocorridos neles, pela separação de casais. Pela proibição do uso de álcool para eles, dependentes que bebem desde que acordam.
O que ganham é de todos: Comida, cigarros, bebidas, cobertas, lonas. As vezes cozinham num fogo de chão improvisado em quatro tijolos e madeiras que catam. Realizam pequenos trabalhos de jardinagem pelas redondezas, cuidam carros, ficavam na fila do posto para vender as fichas até se tornarem conhecidos. Não se metem com os usuários de crack nem  os aceitam no grupo.Os dois cachorros são de todos, e comem junto com eles o que comerem.
O que fazer? O que gostariam? O que os motivaria a sair da rua? 
Ah, disse-me um, uma casinha pequena para nós onze, um banheiro, tanque prá lavar a roupa, com lugar prá separar o lixo... Podia ser uma peça só. Mas que tivesse um pedacinho de terra prá plantar chás, como minha avó e minha mãe faziam antes da família vir para Porto Alegre. Um outro disse apenas - televisão. Divagaram um pouco sobre o que fazer, um deles disse-me que trabalhou mais de vinte anos na construção civil, mas que agora, que tem bastante emprego, não consegue trabalhar por causa do álcool e acha que nem saberia mais. Se tivessem uma casa iriam mesmo todos juntos? Disseram que sim.r como viviam antes? Nem pensar. Até podem sair da rua, mas para viver de outro jeito. Do jeito que aprenderam na rua.
Mas também disseram que a rua tem seus encantam, que vicia. que seria difícil mudar depois de tanto tempo. Viver como viviam antes? Nem pensar. Até podem sair da rua, mas para viver de outro jeito. Do jeito que aprenderam na rua.
Acreditam em organizações políticas? Política, para eles, é na época eleitoral, quando até "distribuem papéis".Dois votaram. Em Dilma, por sinal. Por causa do Lula. A vida deles melhorou com Lula? Sim, as pessoas compram mais, sobra mais lixo. Um deles tem um radinho de pilhas. E outro, tem um celular, mostrou orgulhoso um Nokia simples, mas que é o contato de todo o grupo.A filha de um deles comprou apartamento. Mas não tem lugar prá ele lá, o marido não quer por causa do álcool. Nem ele quer. Contato com as famílias? Praticamente não.
Me ofereceram um gole de vinho. Disse não poder beber, antibióticos. Agradeci, e disse-lhes querer deixar dinheiro para uma garrafa. Quanto? Três. Deixei uma nota de dez, que foi guardada sem discussão no meio de cobertores dobrados. 
Lembrei deles ontem, indo para meu plantão as sete da manhã,  pedi ao motorista do táxi fazer uma pequena volta e olhei o grupo. Dormindo encostados uns nos outros, uma montanha de lixo na volta. E pensei  como, em plena era da "minha casa, minha vida", poderiam eles conseguir sua casinha com uma peça grande e a hortinha de chás. Ou a dignidade a que todos os brasileiros, constitucionalmente iguais, teriam direito.



Um comentário:

Anônimo disse...

Um texto, literalmente, cheio de emoções.

Parabéns Regina