segunda-feira, 26 de julho de 2010

Pensando na FASE



 Estatutos são como crianças: para conhecer uma criança, só brincando e interagindo com ela. Para entender um Estatuto, só o vendo sendo cumprido. Ou não.
Mas o barulho ou a falta de barulho que acompanha a elaboração e aprovação de um estatuto já aponta os rumos e tendência. Trabalhava na antiga FEBEM quando iniciamos o desmonte da instituição, a separação entre FASE e FPE, e quando acabaram-se os resquícios de alguns horrores que acompanhavam o Código de Menores. E assisti a uma sociedade dividida, alguns entendendo que o ECA é um instrumento capaz de assistir e dar proteção e abrigo a imensa massa de crianças e adolescentes em situação de risco ou abandono e os autores de atos infracionais;
Assisti também ataques de fúria  moralista. Queriam a redução da maioridade penal. Ouvi pessoas propondo maioridade penal a partir dos dez anos, outro doze, catorze, dezesseis. Cada ato infracional cometido por um adolescente menor de 18 anos reacende o debate. Mas poucos de debruçam a observar as condições de vida destes infratores, suas origens, suas famílias.
Em sua maioria negros, muitos analfabetos funcionais (escrevem o nome e lêem alguma coisa, mas não conseguem escrever uma frase). São rapazes sem trato, sem roupas de adolescentes, sem vida de adolescente, sem escola, sem trabalho, Maioria de dependentes químicos, oriundos de famílias desestruturadas. Quando já não estabeleceram a própria família biológica ou parental Não tem qualificação profissional, oportunidades de trabalho são as de maior precariedade. Sem vínculo empregatício, tarefas subtarefas, mal-remuneradas. Mas emprego formal, mesmo com a alta nos índices, não atingea os muito pouco qualificados. Ainda existem pessoas sem documentação básica em Porto Alegre. Existe trabalho infantil. Existe trabalho escravo no Brasil. 
E meninas cooptadas para a prestação de serviços sexuais.
As meninas que estão cumprindo medida estão, em grande parte, envolvidas com o tráfico ou atuando junto com os campanheiros ou namorados. Por toda uma estrutura extremamente machista e conservadores, algumas mulheres e meninas assumem os atos infracionais dos namorados, carregam as armas, o produtos dos furtos. Quando apreendidas, manifestam afeto e consideram-se retribuídas por namorados ou companheiros, mas raramente recebem suas visitas. No final das sentenças, poucas retomam o vínculo.
Numa sociedade que sabidamente não tem emprego para todos os seus cidadãos, e cuja concentração de renda beira a vergonha vamos encontrar parte da juventude e de terceira idade empregados, por exemplo, pelo tráfico..
É óbvio que apesar de entendermos estes fatores atenuantes, o ato infracional nos assusta, atemoriza. Violência nenhuma tem justificativa e TODA ELA deve ser penalizada com a restrição de liberdade. Mas não basta tirar das ruas. É fundamental que lhes seja apresentada uma nova possibilidade de vida, outra alternativa de sociedade. É preciso mudar todo um conceito de cidadania e direitos, dele e das outras pessoas. De responsabilidade e de contenção dos impulsos. Pode-se pensar, querer e não fazer. Convencer a alguém habituado à discriminação, à miséria moral e social que a vida pode ter outro sentido esbarra fatalmente em questionamentos sobre as diferenças de extrato social e o por que delas.
É imprescindível tornar este infrator um cidadão. Privação de liberdade sim, mas também alternativas, opções, profissionalização. Políticas públicas, acompanhamento social e educação são a única maneira de ressocializar um infrator.
Como trabalhadora do setor, conheço o outro lado: Do funcionário mal capacitado, cansado, com baixa remuneração, sofrendo assédio moral diuturnamente, forçado a jornadas de até 60 horas sem intervalo, sem material básico para trabalhar, constantemente coagidos, sendo coagidos no desempenho de suas atividades sindicais. Sem nenhum acompanhamento psico-social. Seu trabalho consiste na convivência com uma clientela que impõe a disputa de poder e o questionamento da autoridade. Em sua grande maioria estes adolescentes estão lá por absoluto desconhecimento ou desprezo por limites. Onde a máxima “para estar morrer basta estar vivo” está presente na imensa maioria dos casos. Quando a própria vida vale nada, porque a vida de outro valeria? O que vale a vida de um trabalhador para um destes adolescentes? Enfrentar isto todos os dias, ter hora para entrar. Não para sair. Só.
E mesmo com as dificuldades estruturais desta instituição, os trabalhadores c trabalhadoras deste setor é quem mantém os autores de atos infracionais com um mínimo de normas e programas. Porque a cada quatro anos mudam em sua maioria os projetos opostos pelos governos que se alternam.
Inda bem; Mas inda bem que estamos nós no serviço público para sabermos o que e como fazer.
O que não dá pra entender é este povo que ainda acha que tem gente (pobre, claro) que nasce  pro mal, e daí só mesmo com a redução da idade penal.

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